Nos discursos que
circulam em torno da fotografia, e que sempre se confrontam com o
silêncio essencial das imagens, interpela-nos pela sua singularidade o percurso ensaiado em A Câmara Clara de Roland Barthes (Edições
70, 1981). Nele se assume a postura de um saber desarmado, que
desarticula as grelhas de conhecimento, para melhor se acercar do
extremo fascínio de um fenómeno.
Em
Barthes, ultrapassando os protocolos de leitura que relativizam o
específico "poder" da fotografia, afirma-se uma espécie de
espanto metafísico. É uma perturbação que decorre do confronto com um
"momento congelado" que insiste na irrecusável intensidade da sua
existência, mas que a câmara vai fixar no preciso momento em que se
perde- perdição que a nossa presença como espectadores
simultaneamente testemunha e confirma. Na fotografia o verbo "ser"
conjuga-se num tempo totalmente perfeito, porque radicalmente
consumado e na medida em que se mostra estanque na sua fulgurância
existencial, sem detritos nem deriva. E tudo o mais será literatura, a
pretexto da fotografia.
A fotografia
dar-nos-ia a vida como "spectrum", o morto regresso do que vemos
vivo. Acontece que este confronto consiste num abalo puramente vital,
isto é, a mais viva consciência de uma perda como resultado da química
dos materiais, numa espécie de operação alquímica que permite a
paradoxal salvaguarda da vida, na luz e noite essenciais, através da
sensibilidade de alguns sais de prata.
Na
actualidade, na era da imagem numérica e digital,o imaginário dominante acerca da fotografia é bastante
distinto. Procura-se obsessivamente
o "vivo" das imagens, mas todo o processo é agora como que desfocado
dos trânsitos da realidade e do mundo, abstraindo espaço e tempo. A natureza espectral encontra-se do lado
da própria mediação e experiência do fotográfico. Muito pouco da paciente
comunhão com a vida e as suas circunstâncias na duração das longas
exposições ao tempo, muito pouco das cerimónias indispensáveis para alcançar um
momento decisivo e raro; visa-se a captura do real com
múltiplos disparos que se reconstituirão num ecrã, a partir da
manipulação de reservatórios de "pixels"; opera-se por saltos, por
cesuras que elidem as continuidades e os atritos do vivido.
É
nesta tensão, que subjaz a alguma da fotografia contemporânea, que
podemos situar dois projectos que se mantêm fiéis ao legado das imagens químicas, numa espécie de nostalgia activa.
John Cyr fotografa as tinas que acolheram os líquidos de revelação e de fixação
das imagens de alguns fotógrafos. Nelas como que se gravaram o atrito e a tracção mágicos do mundo, no seu carácter luminoso e etéreo, mas
implicando o desgaste dos materiais, algumas impressões digitais,
feridas na pele, cicatrizes ao modo de um ritual de sacrifício.
Abelardo Morell pratica algo que se aproxima de uma "meta-fotografia" (ver aqui); apresenta-nos neste vídeo um projecto que reconduz as fotografias à materialidade
da natureza, criando uma nova utopia ao arrepio da actual
condenação à abstracção do "pixel". O mundo outra vez o suporte da imagem do mundo.