12.  António Bracons ou A  Edificação do Silêncio

 

 

António Bracons

Sobre o Silêncio, ed. autor, 2020 
Ingenium, ed. autor, 2022

  © fotografias de António Bracons 
 

Há toda uma vida da fotografia que corre à margem dos grandes mecanismos de marketing e distribuição. Como noutras artes (por exemplo, a da poesia), a massificação cultural abandonou a circuitos independentes muito do que de mais significativo, intenso e perene se vai produzindo. Aliás, António Bracons, o autor dos dois fotolivros que aqui folheamos, presta um discreto mas precioso serviço público na sua página virtual Fascínio da Fotografia1, que acompanha esse pulsar quotidiano dos apaixonados da arte fotográfica.

 

 Sobre o Silêncio 2 e Ingenium 3 têm em comum o rigor, o despojamento, a subtileza e a intensidade das suas opções fotográficas e de edição. São objectos personalizados, na escolha de papéis, texturas, grafismo, na respiração das imagens; chegam-nos em exemplares numerados e assinados, que podem incluir uma prova original. 
 
Se Sobre o Silêncio propõe uma leitura fotográfica do conceito tão complexo e até paradoxal que dá o título à obra (abordagem complementada por sugestivos e informados textos do autor sobre o tema, que constituem um pequeno caderno que integra o projecto), já o livro mais recente parte do conceito e da prática da engenharia. Não obstante as visíveis (é o termo) diferenças, subtis laços unem os dois projectos, denunciando a marca de água do autor. São, em ambos os casos, fotografias a preto e branco de uma grande austeridade e que, a partir de materialidades bem identificáveis, sugerem, até por alguma ambiguidade e descontextualização procuradas, uma dimensão outra, algo que está antes ou depois do puro visível.  
 
Temos de reconhecer que Sobre o Silêncio é já um livro de engenharia, no sentido mais lato do termo, não só por incluir, em determinados momentos do seu percurso, imagens de monumentos, mas também pelas suas estratégias de construção e desconstrução em torno do silêncio. Ora se silencia, ora se ergue o silêncio. É que o silêncio nunca é propriamente um vazio, mas limiar, um processo relativo ao que se edifica ou despoja, porque, como nos diz Octavio Paz, não pode deixar de motivar palavras, novas imagens, signos: “Y aun el silencio dice algo, pues está preñado de signos.” 4 
 
 
 
 

 
 
Silêncio é, desde logo, uma questão musical, alternância entre som e pausa, e o livro tem essa respiração ritmada pelas páginas em branco, que sinalizam, de algum modo, o silêncio em si, homólogo ao invisível, tudo aquilo que, ainda assim, se torna horizonte e se nos aproxima como experiência singular. Começamos com uma pequena imagem de nuvens que, na linha das ideias que acabámos de propor, nos traz à memória as “equivalências” de Stieglitz. O irrepresentável toma forma no incorpóreo das nuvens, cuja matéria se nos afigura como imponderável imagem do próprio fluir vital. Mas logo se segue uma fotografia que ocupa praticamente toda a dupla página, em que a terra, um caminho, conduzem precisamente às nuvens. Ao longo de todo o livro existe essa espécie de inquietação que alterna escalas, típica de quem procura e inevitavelmente suscita as diversas estações de uma íntima peregrinação.  
 
11. O mundo suspenso numa ponte



Roland Barthes, em A Câmara Clara (Edições 70, 1981):

É pelo studium que me interesso por muitas fotografias, quer as receba como testemunhos políticos quer as aprecie como breves quadros históricos, porque é culturalmente (...) que eu participo nas figuras, nas expressões, nos gestos, nos cenários, nas acções.  (p.46)

(...) o punctum: quer esteja cercado ou não, é um suplemento; é aquilo que eu acrescento à foto e que, no entanto, já lá está. (p.82)
O punctum é (...) uma espécie de fora-do-campo subtil, como se a imagem lançasse o desejo para além daquilo que dá a ver (...). (pp. 85-86)

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Uma coisa é reconhecer, mais uma vez, a pertinência e imaginação teórica de um livro sobre fotografia, como é o caso deste, o seu jogo sedutor entre saber e desejo. Outra é perceber que é exactamente assim como ele diz, que se nos ajusta como perfeita luva. Por exemplo, numa fotografia de Bruno Barbey sinto essa ferida a que Barthes chama punctum, algo que encandeia, um campo cego: Porto, 1964.




Ponte Luiz I, Porto, 1964 . Bruno Barbey 


O que nos faz o encanto de certas fotografias? O que nos prende nelas, não nos deixa desviar os olhos, parar de olhar? O que depois  nos leva a fechá-los intensamente, prolongando-as muito, sonhando o resto?
Há, de facto, questões da estética, das regras fotográficas e da sua transgressão, incidências da Sociologia e da História. Sim, tempos difíceis, o "magala" e a "sopeira", uma tipologia a traço muito grosso que é o contrário do que sinto por esta imagem e os seres nela representados; há um país pobre e cinzento sem opção, alguma coisa de “novo cinema português"; há até uma extraordinária simbólica visual, a que aproxima o homem e a mulher nos seus cinzentos afins, unidos e perdidos na poeira etérea do mundo em volta, elevação e risco, levitação por sortilégio do amor, a mão que insiste em se prender às grades. Ainda assim, tratando-se de fotografia, pode haver outras intensidades. Punctum. Eu andava por ali, criança, naquelas ruas lá em baixo, o mundo estava suspenso numa ponte, tão leve, tão pesado, algo estava a começar naquele dia, e só sabemos que já não existe e hoje o reencontramos. Esse mundo suspenso numa ponte.


jmts.

  Bruno Barbey aqui






10. Pascal Anders ou Da Ocupação dos Lugares

Pascal Anders 

New York City, 2010
Alphabet City, 2011
Paris Est Tout Petit., 2011
Lothringen, 2013

São quatro dos livros do fotógrafo (ver aqui). Edições de autor, chegam-nos pelo correio, em envelopes sóbrios mas personalizados, tamanho de bolso. O grafismo é depurado e de discreto efeito, e podemos encontrar elementos adicionais: provas numeradas, a reprodução de um postal ilustrado. Estes ensaios fotográficos perseguem a comunicação, buscam novos leitores e olhares, há neles um efeito claro de imersão no mundo, mas sem comprometer a busca e o rigor estéticos. São convites a aproximarmo-nos dos lugares e a conhecê-los- contudo, estamos nos antípodas do guia turístico ou de qualquer amena deambulação.
Impõe-se uma distinta personalidade fotográfica nestes livros que reinventam a estética da “street photography” (particularmente os ensaios dedicados a Nova Iorque e a Paris) ou o inquérito de matriz sociológica, em que uma aparente neutralidade do olhar procura revelações e intensidades (em Alphabet City e, de forma mais evidente, em Lothringen).
Percorridos em conjunto, explicam-nos e exemplificam diferentes estratégias dessa arte maior da fotografia que é a da ocupação dos lugares, e que se iniciou quando Louis Daguerre, num dia de 1839, experimentando uma nova tecnologia, decide dirigir a sua atenção para o Boulevard du Temple, em Paris. E lá estavam uma paisagem urbana, pelo menos dois figurantes humanos, uma ordem social, a vida que já corria. 
 
Em New York City (2010), depois da plácida panorâmica inicial, transposto o rio, vamos penetrar na silhueta negra da cidade. As fotografias ocupam todo o espaço das páginas duplas e não vão permitir que o olhar serene. O contraste é muito forte, temos algumas chapas de luz e o gelo das sombras. Estabelece-se uma atmosfera que apetece chamar de bárbara beleza, um tanto subsidiária da estética cinematográfica de uma câmara de mão.


Estamos sempre demasiado próximos, como se nos fosse retirada a hipótese de um tempo de reacção e nos surpreendesse a vertigem de um lugar. O fotógrafo expulsa-nos de todo o espaço de conforto e a composição das imagens privilegiará os planos inclinados, as perspectivas instáveis.
Estas fotografias colocam-nos a questão de gerir o caos, de compreendê-lo ou sobreviver-lhe, envolvidos que estamos por uma multiplicidade de índices sociais e até raciais. Há em tudo uma pulsação simultaneamente pública e íntima e o mapa da cidade parece fazer-se de uma espécie de densa esgrima de olhares. Os “graffiti” surgem como se fossem verdades instantâneas e precárias, surpreendendo o espectador em busca de uma sintaxe e de um sentido para os elementos aleatórios da cidade. É uma estética que se faz de vedações, gradeamentos, linhas divisórias, perímetros de segurança, e em que circulam figuras que nos aparecem frequentemente a três quartos, no celebrado e dinâmico “plano americano”.
O livro sugere-nos um devaneio final: a noite cai, envolve o Chrysler Building; a banda sonora será de um jazz trepidante, com um solo áspero e lírico; e, se na última imagem lemos (enfim) “peace”, é apenas uma palavra de difícil e ilusória interpretação.






Em Paris Est Tout Petit. (2011) encontramos grandes afinidades com o livro dedicado a Nova Iorque, mas o efeito global é substancialmente diferente. De alguma forma, passamos de um ponto de vista exterior para a tentativa de sugerir a instalação num lugar íntimo ou natal. É como se captássemos em duas grandes metrópoles o seu timbre distintivo, um personalizado mas indefinível modo de existir e de se manifestar. (Novo delírio: ouvimos agora “Gymnopédies” de Eric Satie,  uma banda sonora para caminhar com serenidade, languidez e algum sobressalto.) 


9.  A Fotografia de José Melim ou Uma Questão de Tempo

      [introdução a  José Melim, Instantes, Mindaffair, 2014]

© fotografias de José Melim



O título do texto com que José Melim introduz este excelente conjunto de fotografias salienta o que me parece ser o núcleo essencial do seu trabalho- trata-se, realmente, de uma questão de tempo, até na medida em que está em jogo uma arte de viver, isto é, de passar o nosso tempo no mundo, testemunhando-o e merecendo-o.
Antes de mais, é esta uma prática fotográfica que se apossa do tempo do espectador, contrariando os hábitos dominantes de consumo acelerado e frívolo das imagens. Tal só acontece porque o fotógrafo dá também tempo ao tempo, nessa decisão prolongando os gestos primordiais da História da Fotografia: o caçador de imagens, colado ao mundo, está atento aos avisos em redor e assume a postura dos felinos em expectativa do instante fulminante. Não encontramos aqui os rituais contemporâneos que alienam o real e, com ele, o precioso atrito da relação do homem com o mundo, substituindo-os pelo simulacro da acumulação espectacular das imagens. Neste sentido, o presente livro de fotografias é o resultado de duas operações exercidas sobre o tempo.
Pelo seu carácter antológico, tem em si inscrito o apuro que resulta de uma selecção (que se suspeita dramática) de entre um extenso corpus fotográfico produzido ao longo de décadas, e que atravessa, inclusivamente, a fronteira entre o analógico e o digital. Perante o modo de existir destas imagens, temos a intuição de que o fotógrafo preferiria às suas decisões o escrutínio do tempo, que é, como diz Marguerite Yourcenar, “esse grande escultor”. ¹
Mas a imersão na temporalidade é, num outro plano, o diálogo deste livro com a História da Fotografia. Instantes ilustra, com virtuosismo e sistematicidade, a própria “gramática” do processo fotográfico que é, em si mesma, um produto histórico, e isto porque estamos perante um observador que, se merece os acasos da sorte, é sobretudo consciente do que está a fazer, como, aliás, testemunha o seu texto introdutório. Neste assumir da História da Fotografia, e porque, como nos diz logo em epígrafe o autor, não há um olhar que possa ser inocente, denuncia-se um essencial classicismo estético, baseado em valores como o equilíbrio e a harmonia universais ou, noutra perspectiva, perseguindo a captação de uma essência, na qual o mundo se viesse aquietar com as suas formidáveis energias. Prescinde-se, sem remorsos, de muitas das pulsões da fotografia contemporânea: a neutralidade analítica, o inquérito social ou humanista, a aridez conceptual, a deriva de um registo confessional.




 
8. Olhar de novo pela primeira vez


Maíra Soares apresenta assim o projecto Este Seu Olhar

Este seu Olhar é um ensaio feito a partir de fotografias que meu pai fez de minha mãe durante o primeiro ano de casamento. Encontrei essas imagens depois da morte de minha mãe, 35 anos mais tarde, e foi como se estivesse contemplando outra pessoa.  // A proposta deste ensaio é ir ao encontro de minha mãe através do olhar de meu pai. Minha intenção é desvendar seu mundo e sentimentos nesse período da sua vida, enquanto passeio pela memória do meu pai.

Temos aqui uma espécie de tributo a quem desapareceu, mas muito longe do ritual fúnebre das imagens. Dificilmente se conceberá um olhar mais sereno e vivo acerca da passagem da vida. Quando Maíra ocupa o lugar da mãe nas fotografias, e olha tudo isso com o olhar apaixonado do pai, há um vazio que desaparece, e o passado pode então ressurgir na estranheza e intensidade de cada instante. O tempo não pesa nos olhos com a sua ferrugem, porque Maíra assume a forma mais radical de compaixão: ser com o ser do outro que prolongamos na nossa vida. O virtuosismo discreto do fotógrafo está em dar a ver o olhar num espelho que deixa de ser narcísico, porque apenas propõe uma teia delicada de pontos de vista: olhar sempre de novo pela primeira vez.
O livro tem a beleza simples do que profundamente existe, e é filmado com a paixão das coisas que o tempo apura e depura.






jmts.


7. Fotografia: resistências, atritos

 
Nos discursos que circulam em torno da fotografia, e que sempre se confrontam com o silêncio essencial das imagens, interpela-nos pela sua singularidade o percurso ensaiado em A Câmara Clara de Roland Barthes (Edições 70, 1981). Nele se assume a postura de um saber desarmado, que desarticula as grelhas de conhecimento, para melhor se acercar do extremo fascínio de um fenómeno.
Em Barthes, ultrapassando os protocolos de leitura que relativizam o específico "poder" da fotografia, afirma-se uma espécie de espanto metafísico. É uma perturbação que decorre do confronto com um "momento congelado" que insiste na irrecusável intensidade da sua existência, mas que a câmara vai fixar no preciso momento em que se perde- perdição que a nossa presença como espectadores simultaneamente testemunha e confirma. Na fotografia o verbo "ser" conjuga-se num tempo totalmente perfeito, porque radicalmente consumado e na medida em que se mostra estanque na sua fulgurância existencial, sem detritos nem deriva. E tudo o mais será literatura, a pretexto da fotografia.
A fotografia dar-nos-ia a vida como "spectrum", o morto regresso do que vemos vivo. Acontece que este confronto consiste num abalo puramente vital, isto é, a mais viva consciência de uma perda como resultado da química dos materiais, numa espécie de operação alquímica que permite a paradoxal salvaguarda da vida, na luz e noite essenciais, através da sensibilidade de alguns sais de prata.
Na actualidade, na era da imagem numérica e digital,o imaginário dominante acerca da fotografia é bastante distinto. Procura-se obsessivamente o "vivo" das imagens, mas todo o processo é agora como que desfocado dos trânsitos da realidade e do mundo, abstraindo espaço e tempo. A natureza espectral encontra-se do lado da própria mediação e experiência do fotográfico. Muito pouco da paciente comunhão com a vida e as suas circunstâncias na duração das longas exposições ao tempo, muito pouco das cerimónias indispensáveis para alcançar um momento decisivo e raro; visa-se a captura do real com múltiplos disparos que se reconstituirão num ecrã, a partir da manipulação de reservatórios de "pixels"; opera-se por saltos, por cesuras que elidem as continuidades e os atritos do vivido.
É nesta tensão, que subjaz a alguma da fotografia contemporânea, que podemos situar dois projectos que se mantêm fiéis ao legado das imagens químicas, numa espécie de nostalgia activa.

John Cyr fotografa as tinas que acolheram os líquidos de revelação e de fixação das imagens de alguns fotógrafos. Nelas como que se gravaram o atrito e a tracção mágicos do mundo, no seu carácter luminoso e etéreo, mas implicando o desgaste dos materiais, algumas impressões digitais, feridas na pele, cicatrizes ao modo de um  ritual de sacrifício.



Abelardo Morell pratica algo que se aproxima de uma "meta-fotografia" (ver aqui); apresenta-nos neste vídeo um projecto que reconduz as fotografias à materialidade da natureza, criando uma nova utopia ao arrepio da actual condenação à abstracção do "pixel". O mundo outra vez o suporte da imagem do mundo.



 jmts.




6. Meudon, 1928 ou A Fotografia



É talvez apenas uma questão biográfica. A minha descoberta pessoal da Fotografia coincide com a revelação de André Kertész num pequeno livro de bolso, com imagens da Hungria natal, de Paris, de Nova Iorque. Vejo em Kertész o que mais me interessa na Fotografia. Muito em particular, está quase, quase tudo em "Meudon, 1928", que nos transporta para os arredores de Paris. Encontro nesta imagem uma espécie de definição pessoal e selvagem da Fotografia. A saber.

a) Haverá numa fotografia um lugar e um tempo concretos dificilmente iludíveis.

b) Perseguir-se-á a sorte, voltando ao local várias vezes (como fez Kertész em Meudon) ou andando às voltas no mesmo lugar. Construa-se então uma natural transfiguração das coisas, pode mesmo encenar-se um pouco (o transeunte é, neste caso, amigo do fotógrafo), que o real se ocupará também da simulação.

c) Estaremos atentos à margem, aos eternos subúrbios e traseiras da vida, existirá uma espécie de lepra do tempo, e que aí nasça um fulgor, acontecimento decisivo, um equilíbrio maior.

d) Que se tenha alguma dúvida acerca das fronteiras entre o chamado real e o chamado sonho, que o real nos pareça uma modalidade do sonho, que o sonho seja uma alínea do real.

e) Estará presente a síndroma "blow up": poderemos habitar a fotografia, percorrer as minúcias (letreiros, transeuntes, estaleiros de obras sucessivas) e haverá sempre um mistério a resolver (de onde vem, para onde vai o homem do fato escuro, o que transporta tão ciosamente?).

f) O mundo será o encontro e o desencontro do mundo, das suas velocidades, sentidos, pontos de vista.

g) Haverá uma geometria essencial, mas com algum atrito, uma aspereza qualquer que não deixe o brilho inteiro.

h) De preferência o preto e branco, como se fosse o necessário recuo para alcançar as paisagens, os trabalhos e os dias, como se se confundisse com o que talvez seja o peso mais interior dos olhos.

i) Sobretudo que, por fim, a fotografia dispense as palavras, estas palavras.


jmts.


























meudon, 1928. andré kertész










5. Encenação de uma Encenação


O trabalho de Lacey Terrell, no projecto que intitula offSET, tem a enorme vantagem de questionar as narrativas consagradas acerca do real, da ficção, da banalidade e do mistério. A fotografia é como que inventada para reproduzir mecanicamente o real, mas a perseguição que ela lhe move ao longo da sua história vem apenas revelar o carácter potencialmente infinito e fugidio do seu objecto. Apreender o real, reproduzi-lo (offset) é necessariamente deslocarmo-nos dentro dele entre metamorfoses, vazios e sobras (off set). Se o real é reinvenção de si mesmo, a sua adiada encenação, a fotografia será, nessa medida, a encenação de uma encenação. Lacey Terrell, offSET (aqui).

jmts.




4. Fotografia como cicatriz e palimpsesto



Diz-nos a japonesa Miyako Ishiuchi (aqui), a propósito das suas fotografias de cicatrizes :

I cannot stop [taking photographs of scars] because they are so much like a photograph. They are visible events, recorded in the past. Both the scars and the photographs are the manifestation of sorrow for the many things which cannot be retrieved and for love of life as a remembered present.







E Gérard Castello-Lopes nas Reflexões Sobre Fotografia (Assírio & Alvim, 2004, pp. 67,68) :


Estou persuadido de que, ao longo da nossa vida, e particularmente durante a infância, vamos retendo, memorizando formas, gostos, cheiros, sabores, que armazenamos algures numa memória de que só temos vaga consciência. E assim se gera em nós uma espécie de palimpsesto, uma escrita secreta, meio obliterada pela percepção racionalizável e superficial da realidade que nos cerca.
Mas aqueles arquétipos sobem à tona do consciente de vez em quando, sobretudo quando tentamos exprimir algo profundo e importante. Nas artes plásticas, de que a fotografia é parente menor, poder-se-ia definir esse surdir arquetípico como o alicerce do que comummente chamamos estilo, aquilo que nos leva a distinguir uma fotografia de Cartier-Bresson doutra de Alvarez Bravo. É o signo escondido, o vinco pessoal, a secreta assinatura do autor.





Em ambos os casos se revela a conhecida vocação da fotografia para lidar com o passado, ou melhor dizendo, com o presente em devir sempre iminente de passado. Recordemos o projecto de Atget, que percorre o Velho Paris exactamente um segundo antes do camartelo da modernidade.
Mas os dois fotógrafos fazem-no de modo paradigmaticamente diferente.
Em Miyako a cicatriz é a presença delicada e dolorosa de uma ausência e a fotografia vem suturar as feridas da vida. No vendaval do tempo, as imagens são o que resta de um traumatismo, uma espécie de inventário cruel e sensível dos despojos que uma existência largou, pequenas colecções que ecoam a violência do passado na beleza da sua quase extinção.
Em Gérard a fotografia é a madeleine proustiana, torna a encenar a inefável cena primitiva e pessoal. O tempo deixa-se ver na transparência eterna de si mesmo, jogo, ilusão e iluminação, como se fosse todos os dias descoberto na sua antiga novidade. É assim nessa fotografia (Algarve, 1957) em que uma mulher nos sorri pela primeira vez desde o mais dentro das eras.


(Este texto é também uma homenagem a Gérard Castello-Lopes :1925-2011).



jmts.


3. Virtudes e pecados da fotografia



Virtudes da fotografia ou o pecado da desobediência a uma imagem definitiva da vida. Percorrer o mundo fisicamente com uma máquina nas mãos, fazer reportagem, ter de estar no local, no seu ar, luz e atrito, no correr dos dias. Buscar depois o ensaio, algo por detrás das aparências evidentes ou uma evidência maior das aparências- e, então, por exemplo, o preto e branco, redesenhar os modelos, encontrar uma beleza politicamente incorrecta, a fluidez dos corpos, o momento em que se fundem com a respiração das casas, o banho lustral das figuras que mergulham e depois deslizam na espessura do seu próprio tempo. É assim em Jennette Williams, The Bathers (aqui).      jmts.







2. Momento Decisivo ou Inventário do Mundo




De entre as práticas da fotografia, procuremos reter duas polarizações, a partir das quais poderíamos graduar muitos outros percursos pessoais. São pontos de referência num universo de pesquisa estética múltiplo e cada vez mais descentrado. Cercar o mundo, estender-lhe diferentes redes de captura, sabendo que ele é matéria fugidia ou que a missão é talvez apenas impossível.
Por um lado, buscar o momento decisivo, no rasto dos passos consagrados de Henri Cartier-Bresson, das suas fotografias e escritos teóricos. Com a discrição, penetração, rapidez e rigor do olhar, fixar momentos em que o mundo como que se assemelha mais a si próprio, construindo arquétipos onde quotidiano, História da Arte, geometria e ideologia dialogam numa tensão e equilíbrio enfim revelados. Só um exemplo: Derrière la gare de Saint-Lazare (Paris, 1932).





É uma cena trivial de um Paris chuvoso, que o fotógrafo-repórter percorre numa atenção quase felina. O momento decisivo: na espessura do quotidiano, na sua materialidade um pouco sórdida (pedregulhos, escadas desconjuntadas, traseiras do grande mundo), o milagre da matéria volátil e grácil da vida. O salto atrapalhado de um anónimo transeunte, para não sujar os pés na lama da cidade, repete a imagem do cartaz que anuncia a beleza leve de uma pirueta. E o fotógrafo merece, então, toda a sorte que o apuro do seu olhar justifica. No Inverno do mundo, inventar o mundo que retoma a inesperada e árdua suspensão do mundo.

Em silencioso contraponto, Andrew Hetherington (e é apenas um exemplo) prossegue o mais paciente trabalho de inventário, quarto de hotel após quarto de hotel, na sua série / livro A Room with a View, como se aí se jogasse o próprio modo de habitarmos a vida. O fotógrafo apresenta-nos uma pesquisa sistemática de quatro anos das suas errâncias, registando, de modo aparentemente neutro, as paredes de todos os hotéis onde permaneceu e as vistas das respectivas janelas. Da acumulação da banalidade nasceria uma compreensão global, dar-se-ia um salto qualitativo, numa espécie de teoria explicativa, bem fundamentada, mas por desistência ou exaustão. Talvez aqui se repitam (um pouco ao contrário, elegendo a estranheza vulgar do quotidiano contemporâneo como um novo exotismo, e retomando com ironia o romance de E. M. Forster) as imagens dos primitivos fotógrafos norte-americanos à descoberta do Novo Mundo ou as peregrinações pelas geografias orientais de finais do século XIX. Esta série fotográfica é apresentada, com a ironia devida, neste vídeo:

A Room with a View from andrew hetherington on Vimeo.


Uma outra sugestão de leitura, para acompanhar a série de Hetherington: o romance de Olivier Rolin, Suite no Hotel Crystal (aqui), em que se prova, na prática, como todas as histórias do mundo se escondem e revelam no seco rol dos quartos de hotel que nos cabem ou fazemos por merecer.

jmts.



1. Livros de Fotografia: modo de usar




Como ver fotografias? E nos livros?
Claro, podem expor-se, elas são mesmo o resultado de exposições várias, dos corpos, dos filmes, nas paredes. E nos livros.
Nos livros estão expostas de modo a que a sua mútua presença cria desde logo narrativas implícitas, fios de espaço e do tempo, a percorrer. Fotografar é ocupar o lugar e um livro de fotografia encena ou retoma essa ocupação. Não esquecer ainda a existência física dos nossos dedos que reorganizam a cena, em velocidade, sequência, atrito, hesitação.
O livro de fotografia 720 de Andrew Phelps (ver aqui), bem como o vídeo que o apresenta, são uma muito sugestiva colocação destas questões.
 
jmts.


Andrew Phelps "720" from Andrew Phelps on Vimeo.